quinta-feira, outubro 25, 2007

Semântica

(não foi escrito no presente..)

Semântica

De sujeito,
virei objeto de um verbo transitivo qualquer,
como se precisasse de algum complemento.

Já não consigo colocar pontos finais.
Os que coloco são seguidos de outra oração,
e eu nunca fui um sinônimo religioso.

Toda expressão virou conotativa
e a sintaxe não fez sentido,
mesmo que subjetivo.

Deixamos de ser conjunção condicional
pra virarmos consecutiva,
mas sempre proporcional, desde que concessiva.

Aceitei ser agente da passiva
só porque você era um tanto intransitiva quanto algumas coisas,
e não há relação que dê certo se não flexionar tudo no seu gênero.

Discutimos sobre certas preposições,
e sabe como é?
Espera-se apenas próclise quando se começa soltando verbo.

Aí nossa conjunção foi seguida de aposto,
então o vocativo passou a ser perjorativo
e nada de pronomes pessoais.

E se quer saber,
nunca vi ela com tanta mania de cacofonia,
ô vício de ver ambiguidade na minha poesia.

Só nos entendemos quando surgiu a sinestesia:
de um lado a metáfora que lembrava um sentimento atemporal,
do outro o sarcasmo que ela sempre gostou.

Logo a respiração foi abreviada,
mas só pra tornar a rima ritmada.
Em seguida, já voltou por extenso.

Vivemos mais ou menos assim,
proferindo antíteses.
E dizem que isso é amor, mas é pura semântica.

domingo, setembro 30, 2007

Nota

(acho que fico por aqui..)

Nota

Se alguém me achar,
devolva.

sábado, setembro 08, 2007

Calendário

(maldita fixação pelo tempo..)

Calendário

Saiba:

Cansei de viver em Janeiro,
de esquecer Fevereiro,
de acordar em Junho que tanto esperei,
simples página rasgada por Julho,
de recomeçar Agosto que você quiser,
de ouvir a chuva de Setembro fazer mais um requiem para Outubro,
de acordar às nove em Novembro
e de todos os seus Dezembros.

Então, se me vir por aí,
por favor,
devolva meu Abril e tudo mais.

Tudo que fez de Março mero espaço
para Maio reclamar as dores sozinho.

Pode ficar com o resto.
Vivo doze de Abril em um ano.
Se cansar,
empresto e vivo também quatro de Janeiro.

Não há mal algum em esquecer cerca de seis de Outubro,
renomear mais ou menos seis de Dezembro,
contornar dezenove de Fevereiro.

Começo meu calendário no mês de minha escolha
e termino onde preferir, ainda que seja aqui.

quarta-feira, agosto 15, 2007

Alguns segundos de nada em especial

(resume tantas coisas..)


Alguns segundos de nada em especial

Tanto esforço pra se tornar passado.
E o futuro só diminui.
Quanto mais segundos em si,
menos segundos em mim.

Tudo é passado
ou aguarda passivamente sua vez de ser.
Presente?
Acabou de passar.

Pára tudo!
Ou não.
Tanto faz.
Quer saber?

Tudo se depara com o fim.
E quem vai lembrar?
No final das contas, meu rapaz,
só é eterno quem tem o epitáfio mais criativo.

É isso que resume tudo o que somos.
Alguns segundos de nada em especial..
Que acabaram de passar.

domingo, agosto 12, 2007

Até quando vai um adeus?

(planejava deixar isso de lado por um tempo, mas uma boa conversa me fez voltar aqui e expor algo que sufocava.. primeira letra de música que posto, um projeto paralelo que um dia eu levo pra frente)

Até quando vai um adeus?

Vai dizer que nem sempre fui assim,
que hoje já sou muito, muito pouco pro que prometi.
Mas quem pode dizer
o que realmente fiz?

Chega de interpretar sinais na contra-mão.
Já cansei de traduzir sentimento em extinção.
O que faz, o que diz, tudo se contradiz
e deixa aparecer verdade e negação

Vou deixar um silêncio bem aqui..
Você vai entender
que a importância disso tudo fica bem maior
se entre essas frases há a chance de você se ouvir.

Chega de interpretar sinais na contra-mão.
Já cansei de traduzir sentimento em extinção.
O que faz, o que diz, tudo se contradiz
e deixa aparecer verdade e negação

Lembra da hora de partir,
aquele medo de se despedir.
Foi quando segurei sua mão
e o tempo fez que um segundo ainda fosse o mesmo anos depois..

Até quando vai o nosso adeus? Deixa pra lá.

quinta-feira, julho 26, 2007

A Essência da Vida

(cronicando de novo..)

A Essência da Vida

"É impressionante o que se descobre por acaso. Pois foi assim que, hoje, em um momento puramente aleatório, fiz a maior descoberta dos últimos tempos. E seguro de que estou certo, passo a relatar minha experiência. Importante notar o quanto coisas tão banais podem ter tremendo significado, mais uma forma de escrever um clichê destacando as coisas simples, mas os clichês existem por um motivo, certo?
Certo. Minha história começa no momento em que cruzei a porta de casa e caminhei pelo corredor que, gentilmente com seu sensor de movimento, se iluminou para mostrar o caminho que viria a percorrer até minha descoberta. Apertei o botão do elevador, fiquei esperando poucos minutos até o mesmo chegar, entrei, apertei o botão do estacionamento. Alguns segundos depois, chegando ao meu destino, as portas se abriram e, ali, disposta de forma tão óbvia estava a essência da vida, meus amigos.
Quando coloquei o pé para fora, não tive como passar pois três vizinhos estavam em frente à porta do elevador, bloqueando minha passagem, esperando ansiosamente pra entrar. Tentei achar um espaço, nada. Então tudo ficou claro: a essência da vida é entrar no elevador. Sim, amigos. Aos poucos fui confirmando a expectativa, como quando pedi licença e um dos três me respondeu, telepaticamente, devo observar:

- Licença? Não tente me enganar, Guardião do Elevador, eu vou entrar!

Essa situação já havia se repetido no hall do condomínio várias vezes, mas nunca havia percebido tamanha importância. Decidido a descobrir mais sobre o assunto, desisti de ir ao cinema e comecei a pensar sobre o assunto. Divido com vocês o pouco de conhecimento que obtive pesquisando em campo.

Achei que talvez nem todos os elevadores fossem o nosso objetivo, já que existem tantos, então saí à procura do certo. Em minha busca, passei por diversos elevadores, pequenos, grandes, com espelho, sem espelho, com choro de criança, sem choro de criança. Alguns eram habitados por rapazes que se colocavam sentados em frente aos números dos andares. O que eles guardavam? Talvez uma combinação secreta relevaria mais coisas. Pensei em sequestrar um desses elevadores, mas não era hora de ficar paranóico. Então, depois de duas horas observando um, nosso suspeito Guardião foi ao banheiro e pude entrar no elevador e tentar diversas senhas. Em vão. Saí um pouco abalado, mas o experimento científico não é feito apenas de êxito, companheiros, por isso continuei.

E então, no número 87 de minha busca - sim, 87, só pode ser um sinal, a soma de seus dígitos é 15, 15! -, achei o que pode ser "O Elevador Um" - o nome que escolhi para a essência. Parecia ser como qualquer outro, mas há de se observar, amigos, que a vida esconde mistérios onde não pensamos em procurar. Quando as portas se abriram, encontrei o motivo de minha suspeita. Talvez por um erro de itinerário ou de vigilância, ali dentro estava um rapaz uniformizado, lia-se "Atlas" em seu uniforme. "Atlas", desbravadores! Só poderia ser esse. E não é só isso, a parte de cima estava aberta e ele sentado nela só com as pernas à mostra, talvez ajeitando o dispositivo de segurança. Tanto faz, fui direto ao ponto:

- Então é você, né?

E ele respondeu, fingindo não saber de nada:

- Quem você 'tá procurando?
- Você não me engana, Guardião, eu posso ver o Portal da Vida.
- Acho que você tá me confundindo com o seu Zé da portaria, o guardinha, ele está logo ali.
- Não tente desconversar, o Portal está aberto diante dos meus olhos.
- Você quer dizer o teto do elevador?
- Eufemismos..
- Do que você 'tá falando?

Eu estava há muito tempo em minha busca pra aturar isso, puxei o Guardião pelas pernas, joguei no chão e comecei a interrogar como se tudo dependesse disso. Mas ele, como foi treinado, insistia que não sabia do que eu estava falando, me chamou de louco. Louco? Faça-me o favor, apenas um homem fraco em mente ficaria louco com
tanto conhecimento aos seus pés, e esse não é o meu caso, tenha certeza disso.

Mas, com minha ânsia por confirmar o que já sabia, não pensei no esquema de proteção ao Portal. Alguns minutos depois, homens disfarçados de policiais chegaram e me levaram, o que só confirmou ainda mais minhas suspeitas.

Eles perguntaram o que aconteceu, como se não soubessem! Após contar para entrar no jogo, ficaram um tanto surpresos, conversaram com um homem de capa branca e me colocaram em uma sala com esse mesmo homem, o qual chamavam de "Doutor". Quem seria esse tal Doutor? Provavelmente alguém do mais alto escalão do Portal.

E não pára por aqui, amigos. Esse Doutor não tentou me enganar por muito tempo.

- O que aconteceu, meu rapaz?
- Não esperava essa sustentação da farsa de você, Doutor.
- Você está falando sobre o Portal?
- Sim.

Foi quando ele deixou claro que estava na operação Controle de Danos:

- Conte-me o que você sabe.
- ...e, assim, finalmente cheguei ao "Elevador Um". Consegui desvendar a Essência da Vida, Doutor, meu destino,

e o de tantos outros nesse mundo.
- Entendo.
- Não vai mais tentar fugir da conversa?
- Não, está tudo bem claro já.

Pouco depois, fui levado por outros homens vestidos de branco. Tentei resistir, mas injetaram em mim o "Soro do Esquecimento", minha vista escureceu.

Acordei aqui, nesse quarto com paredes cobertas por espumas. Mal sabem eles que o Soro apenas apagou alguns minutos de minha memória. Acredito que estão se perguntando como consegui escrever essa carta. Bem, mentalmente montei a agenda do local. Uma vez por dia, sou levado para uma sala maior com vários outros Missionários - decidi nos chamar assim -, esses tiveram suas lembranças apagadas, de fato, pelo Soro do Esquecimento e, no lugar, outras foram implantadas. Como eu sei se só passo dez minutos com eles? Consegui esse papel e caneta com um ex-Missionário que dizia ser um ornitorrinco. Sim, eles são cruéis, amigo. Por isso, temo por minha vida se descobrirem que seu remédio não fez efeito em mim.

Elaborei um ambicioso plano durante semanas com alguns dos ex-Missionários para colocar essa carta fora da Prisão da Vida e ,assim, relevar a verdade para o mundo. Foi difícil explicar para meus ajudantes o que fazer, aparentemente, o Soro retarda um pouco o raciocínio, algum tipo de efeito colateral.

Mas, se Ornitorrinco, Napoleão e Chapolim fizeram tudo corretamente, você acabou de descobrir a Essência da Vida. A Missão escolheu você, nobre transeunte, o mais novo Missionário, e não posso contrariá-la, por isso, deixo em suas mãos o nosso destino. Cabe a você saber o que fazer com tamanha verdade adquirida.

Boa sorte. Que a Essência lhe acompanhe.

Assinado: Missionário X"

...

Então Marcos riu, amassou o papel que encontrara no chão e seguiu para o seu trabalho em uma empresa chamada "Atlas". "Atlas", amigos..

sábado, julho 14, 2007

Um pequeno discurso sobre o tempo

(que fique registrado que já cansei)

Um pequeno discurso sobre o tempo

Faz tempo que eu não escrevo um texto assim, longe da poesia, um diálogo honesto com as linhas em branco. Essas linhas e eu nos entendemos, mesmo que ultimamente tenhamos conversado por desculpas, vez ou outra por promessas. Difícil não repetir as mesmas desculpas, mais difícil ainda se desculpar por uma promessa não cumprida. E é nessa exata última linha que começo minha história.

Foi aqui, nessa mesma quarta-feira de algum mês atrás, talvez terça-feira, mas esse mesmo refrão de uma quarta - ou terça - tocava, do tipo que só toca nesse dia. Típico. Faça-se notar que odeio dias assim e todas suas reflexões, minhas reflexões. Rejeito qualquer sugestão de sentimento, mas vai saber o quanto sou fraco perto de mim.

Então tudo toma conta, e onde me encontrava, encontram-se tantos que nem me reconheço entre os personagens. O que nega, o que vez ou outra aceita, o que finge que não sabe, o que é racional, o que há muito perdeu a razão, o que escreve, o que apaga o que acabou de escrever e o que acabou de colocar esse ponto. E ai de quem tire. E de quem coloque mais um.. Opa, coloquei. Por isso sou tempestade e calmaria pra mim. Sou. É. Ah, se é.

Mas voltando, a unanimidade entre todos meus eus é o fato de que o tempo parou naquele refrão. E isso faz com que a teoria de que o tempo não é uma linha, mas um espaço plano, onde não necessariamente se anda pra frente e pra trás, parece ter sua razão.

Digo com firmeza que cansei de andar para os lados. Cansei de você, tempo. Cansei de fazer promessas pela última vez mais uma vez. De saber que o eu de agora não pode controlar o eu da semana que vem, esse eu que vai insistir em repetir erros, em andar na diagonal. Esse eu que depois vai fazer as mesmas perguntas para confirmar velhas respostas que nunca quisera saber tantas outras vezes.

Não consigo nem organizar meu tempo em um texto, já me perdi em assuntos e frases que nem sempre se comunicam com as seguintes.
É essa invencibilidade do tempo que me destrói.
É o certo tique ante cada taque, é o caminho perfeito, é o não-atraso, a falta de acaso.
É o meu apressar o passo pra acompanhar cada espaço.
É o escasso que nunca acaba, é o pouco que sobra quando ainda há o tanto que resta.
É o amanhã que se pinta de hoje, o hoje que já dorme ontem, é o ontem que não pensa mais em ser hoje.
Mas acima de tudo isso, é o transformar da minha promessa de não fazer disso poesia em mais uma pela última vez outra vez.

No fim, é essa mensagem que parece tão nova, mas que soa tão repetida.
É o meu defeito, e ainda assim o que nunca deixo de fazer direito.

Há de se adorar essa certeza do meu engano. Ah, se há.

segunda-feira, junho 25, 2007

Emergência

(..dedicado à sua fantasia de herói! que ela apareça em algum outro lugar que não esse espelho desfocado)

Emergência

- Fala com sinceridade.
- O que?
- Precisa de um assunto pra que haja sinceridade?
- Não, só não sei o que você espera que eu fale.
- Algo sem prazo de validade.
- O que você quer de mim afinal?
- Você..
- Já tem.
- ..sem poréns.
- Eu não sei mais o que dizer.
- Uma verdade. Mesmo que seja uma que já sei: meu nome, sua idade, a cor do meu cabelo,
que dia é hoje.
- ..castanho escuro e hoje é dia 22.
- Vinte e três..
- Quase!
- Como sempre. Mas deixa pra lá, enquanto você continua brincando de meias-verdades eu procuro a saída mais próxima.
- Só por que eu errei o dia hoje?
- E sempre.

sábado, junho 16, 2007

Estação 1: Tempo

(primeiro post inter-estadual)

Estação 1: Tempo

De tantos, nenhum.

Ninguém fica, ninguém marca, ninguém fere!
Digo com convicção.
Alguém passa, alguém parte, alguém..
Quem?

Presos entre um e dois,
no ponteiro seguinte, antes ou depois.
"Apressa o passo, desvia, não pára!".
Eis que passa quem sempre será ninguém.

E nada fica, nada marca, nada fere!

Mas tudo bem, pois quanto a mim, cansei dos vícios do tempo,
com todos seus segundos contados e minutos desperdiçados.
Apresento-me como herói das horas em um dia sem fim,
de anos, faço décadas, e centenários depois lembrarão de mim.

"Oito, seis, nove, oito..
Última chamada".

"Bom dia.
Prazer.. nenhum".

sexta-feira, junho 01, 2007

Vai entender, né?

(o título diz muito, não faço idéia do que é, mas faz com que eu me sinta bem)


Vai entender, né?

E foi andando, caminhando, eventualmente parando,
foi assim, desse jeito, simples, rotineiro,
como quem não quer nada, como quem não tem nada,
nada a perder, pouco a ganhar, do que vier, faz-se lucro.
Encontrei, um pouco escondido entre a multidão,
distante, mas tangente entre tanta gente,
procuro sentido no que tenho sentido,
acho, acho com a maior certeza que me perdi.
E importa?
Se o que tanto me cerca e ilustra aqui satisfaz,
quem sou eu pra reclamar das cores?
Por falar nisso, quem sou eu?
Boa pergunta. Quem sou eu?
Quem sou eu com você? Sem você? Por você?
Quantos eus posso descobrir até descobrir a mim?
Que venham infinitos de mim para que nunca me descubra por inteiro,
afinal, quem se contenta em ser sempre e pra sempre o que tanto já foi?
Você, talvez, que nunca deixa de ser o que me surpreende,
me prende, me apreende, me aprende e entende.
Por isso, enquanto mudo, fico mudo, pra conhecer melhor,
e desacelero só pra entender os poréns do caminho,
então chego ao fim, mas tem jeito certo de terminar?
Ah sim, assim!

sexta-feira, maio 25, 2007

Darfur

(precisava disso)

Darfur

Parte 1: Espelhos


- Eles estão chegando, eu sei que estão - diz o menino assustado.
- Quem? - pergunta alguém que não consigo reconhecer.
- Eles, sempre eles.
- Eles? Não vejo ninguém chegando.

Quem é esse homem? Por que tenho a impressão de conhecê-lo? Por que o que o segue é sua imagem, enquanto sua sombra mantém-se rígida, em pé?

- Toda as noites eles vêm, às vezes durante o dia. Eles machucam, muito.
- Machucam você?
- É.

E esse menino? Por que é tão difícil encará-lo?

- Prometo que não deixarei ninguém machucá-lo.
- Você não pode impedir.
- Posso e vou. Mas afirmo que não há ninguém chegando.

Silêncio, consegui encará-lo por um breve momento quando ele falou algo que me deixou pensando.

- Quando você parou de se importar?

Tão desprevenido quanto eu, ou mais, essa sombra, esse projeto de alguém fica sem saber o que responder, então o menino assume a conversa outra vez.

- Pelo jeito, faz tempo. Quando eu vou me tornar assim?
- É só você querer ser forte.
- Qual a diferença entre força e apatia? - pergunta a criança assumindo o papel de sábio e tornando possível, para mim, vê-lo por mais um curto espaço de tempo.
- Um não tem nada a ver com o outro - responde condescendente.
- Então por que você, apático, as confunde?

Pergunto-me quem está mais confuso nesse momento. Esse vulto que fala ou eu. Talvez ele, já que é preciso haver a dúvida para que uma pergunta seja feita. Então ele arrisca:

- Como as confundi?
- Você não é forte, você não é corajoso, você é alheio e sozinho. Não me reconhece porque já não é o mesmo, não reconheceria uma parte sua que não convém. Isso é apatia, é essa máscara de poder que lhe permite esse frágil olhar de confiança. Agora olhe pra mim. Reconheço a guerra ao meu redor. Continuo aqui, sem mais.

Uma dúvida esclarecida, talvez. É possível confundir força e apatia. Mas por que sua expressão consegue cegar minha consciência? Melhor, por que sequer presencio essa sua expressão, seu diálogo com uma silhueta? Sonho? Ou pesadelo?



Parte 2: Epifania


- Você é jovem pra entender o significado de coragem.
- Se eu sou jovem para entendê-la, por que você é que continua sem me encarar?

O silêncio que procede é doloroso demais para ser interpretado.

- Quem é você? - pergunto.

Pergunto? Onde foi parar a sombra? Quando me tornei parte do diálogo? Enigmático, ele responde:

- Interessante sua vontade de querer saber quem sou se ainda nem se deu conta que nesse quarto está presente apenas uma pessoa desde o começo.
- Como assim? E você? E aquela..
- Sombra? - me interrompe.
- Isso!
- Difícil se reconhecer no espelho, né?
- Hã? Onde foi parar? - pergunto cada vez mais intrigado.
- Está aí, frente a frente com você.
- Só vejo um espelho, e eu estou nele obviamente.
- Como sempre esteve. Consegue se ver, mas por que é tão difícil aceitar?
- Não aceito devaneios de uma criança.
- Então pare de se ver como uma.



Parte 3: Catarse


- Então, aqui, onde ficávamos três, encontro-me sozinho, como estive desde o começo. Com dois espelhos, válido lembrar.

Quase esqueço do papel e caneta.

- Quem é você?

Outra vez?

- Nunca fui um esquizofrênico com uma voz independente na minha cabeça.

Bem, eu nunca havia sido tinta em uma folha. Mas aqui estou, sou tão você quanto eu.
Sabendo que você, na verdade, é a voz na minha cabeça, não o contrário. E agora com a certeza que sempre estive só em minha consciênia, desde o começo. Mas esses espelhos... Enganam.

segunda-feira, maio 14, 2007

Glasgow (O Paciente)

(o final da série que contém Ataraxia e Catatonia, agora livre desse fardo! o mais confuso de todos.. se fora de contexto, bem-vindo a Glasgow)

Glasgow (O Paciente)

3.

Meus olhos fecham, não por instinto,
mas por consequência.
Vou de um lugar a outro sem sair do mesmo,
e ao meu redor o nada e um pouco de ninguém.

5.

O que antes não doía, hoje espera cicatrizar,
então calmamente, como se tivesse opção,
respiro no ritmo desse alarme que disparou
a incessante arrogância do tempo.

8.

Contraio para desviar do que nem vejo atingir
e respondo ao que nem sequer fui perguntado.
Culpo esses olhos que se abrem,
mas só pra ver o que machuca.

11.

Se agora sei onde dói,
perco a razão consciente do que manifesto.

13.

O branco ao meu redor que me consome
contrasta com aquele vermelho que acaricia.

15.

Acordo.
Espontâneo.
Olho em volta.
Sou eu,
mais uma vez.

segunda-feira, abril 30, 2007

Verde, Amarelo, Vermelho

(voltando às crônicas enquanto a parte final da trilogia mencionada anteriormente não fica pronta)

Verde, Amarelo, Vermelho

E essa história começa assim: verde, amarelo, vermelho.
Então param lado a lado, trocam olhares, fingem que nada aconteceu e ainda faltam cinco minutos, é um cruzamento movimentado.
Ele, discreto, põe o braço para fora do carro, não sem acidentalmente esbarrar no controle do vidro elétrico. Zum. Suor. Clique. Zum. Aparentemente, não era tão útil quanto fizeram-no acreditar na concessionária.

Quatro Minutos.

Ela, charmosa, desliza a mão pelo cabelo, olha para ele com o canto da visão, vê no banco do passageiro o pacote de salgadinho que acabara de comer e lembra de como havia reclamado do preço absurdo pago no Carlynho's Coiffeur, em vão agora. E aqui se faz necessário comentar o slogan do salão: "Uni-duni-tê-sex".

Três minutos.

Ninguém fala nada, a comunicação se dá por sinais quase todo o tempo, pura leitura corporal. Ela se estica para pegar o celular que está tocando em sua bolsa, encerra a ligação, sorri timidamente. Ele grita alguns números incompreensíveis, começava com um nove, ou seria um três? Tanto faz, são múltiplos. Era o número do seu telefone. Ela finge que entende, depois finge que anota, está com vergonha de acidentalmente perguntar outra vez.

Dois minutos.

Ele aumenta o volume de uma música qualquer que toca em seu carro, pouco se entende do irritante som grave que sai, apenas "duuuuuuh", "duuuuuuuh", "dugtz-duuuuuuuh", o que ilustra bem a situação. Como adendo para os que não conhecem o tipo, toda "aumentada de som" é acompanhada de um balançar de cabeça despreocupado com o ritmo, pelo menos aparentemente.

Um minuto.

Fica claro para ela que não haverá diálogo, enquanto é óbvio para ele que "duuuuuuh", o que ilustra bem nosso personagem. Sem telefones, nomes, e-mails, endereços. Nada trocado para uma posterior conversa.

Trinta segundos.

A situação já está incômoda, o pescoço dele dói, mas precisa continuar pois parece dar certo a tática do joão-bobo. Conclusão tirada pelo olhar fixo da moça, pena não ser possível ler os pensamentos, esses que, por mais incrível que possa parecer, se resumem a: "mas que duuuuuuh!", sempre adequado.

Quinze segundos.

Os pedestres atravessam apressados. Ela, calma, acabara de passar pelos cinco minutos mais perdidos de sua vida. Ele, (insira aqui uma onomatopéia que ilustre a situação).

Dez segundos.

"E o sinal não abre", pensa ela demonstrando um sorriso embaraçado.
"Ela é minha", pensa ele. Pensa ele?

Cinco segundos, quatro, três, dois, um.

Ele vai com mais uma história pra contar aos amigos sobre alguém que conheceu no trânsito, saiu, fez cada coisa que não acreditariam se falasse e nunca mais ligou.
Ela sobe os vidros e liga o ar-condicionado porque mais a frente - lembra - existe outro sinal.

quinta-feira, abril 26, 2007

17:57 (O tamanho do mundo)

(uma idéia que tive por acaso às 17:57, certo?)

17:57 (O tamanho do mundo)

Hoje acordei disposto a descobrir o tamanho do mundo, corri o mais rápido que pude só pra aprender que voltaria ao mesmo lugar. Então pulei. E pulei outra vez. Mas não fui muito longe. Logo construí a maior cama elástica que já se teve notícia, aí pulei mais algumas vezes pra voltar ao chão.

Lá em cima, no ir-e-vir da vida, eu olhei para todos os lados e percebi que seria impossível calcular o tamanho do mundo correndo, voltando, pulando, caindo. Mas estava certo de que descobriria, por isso não desisti e passei para o plano seguinte.

Fiz alguns cálculos, estudei e soube que não existe solução pra minha busca, nenhum livro soube me dizer com precisão quantas estrelas, cometas, galáxias e o que mais preenche o negro espaço existem.

Assim desisti de responder a essa pergunta por enquanto. E tantas respostas surgiram em mim na quietude, e um pouco mais de perguntas, e novas resposta, e o dobro de perguntas outra vez.

Foi quando saí de casa - sem rumo - e cheguei a lugar algum, talvez um pouco decepcionado, mas já não importava muito o que poderia acontecer. Aí parei. E sem pretensão olhei para o lado. Ali, tão perto, descansava tudo o que procurei todo esse tempo.

Encontrei o valor da amizade quando sorri e esse sorriso foi motivo de um outro, quando minha preocupação se tornou sua procura por ele em mim.
Entendi a importância da vida quando não mais precisei estender a mão sozinho, quando sua chegada anunciava em mim um inocente medo de sua partida, mas quem pode me culpar pelo receio de emprestar ao universo um pouco do que sou?

Foi aí que, em meio a tantas descobertas, me dei conta do tamanho do mundo, vai daqui até ali, e de lá até cá, simples assim.
No meio disso: eu, você e um pouquinho do que nos faz feliz.

terça-feira, abril 17, 2007

Catatonia

(Deixando de lado, por enquanto, as crônicas. É uma continuação de Ataraxia, parte dois de três, uma série.)

Catatonia

E tudo lá fora é movimento,
aqui, ouve-se o som de um silêncio, e eu.
Meu coma induzido sem sedativos,
minha resposta absoluta ao que me cerca.

"Talvez nunca acorde", diz em branco,
mas há muito esqueci de dormir.
E foi esse esquecimento, essa ferida aberta, esse oblívio
e tantos mais que esconderam a claridade.

Movimentem-se com a luz apagada
e que movimento terão?
Pois é aqui, com essa luz apagada,
que encontrei minha paz.

"Volta, por favor", sussurra em vermelho,
mas sequer tenho rumo.
E se quer, mal posso pensar,
já sou fotografia da inércia.

Pede uma explicação pra tal descontentamento,
mas não é óbvio se assim me privo de sentimento?
Por isso o movimento não existe aqui, uma vez sem luz,
e sobra esse eu, prolixo, pois já não há mais o que ser.

sexta-feira, abril 13, 2007

Um dia de folga

- Pois é, foi um parente muito próximo e preciso viajar pra cuidar dos arranjos funerários - disse pelo telefone à secretária do escritório.
- Tudo bem, avisarei o Sr.Marcos. Quando você volta?
- Provavelmente em sete dias.
- Ok, assim que ele chegar, aviso. Meus pêsames, Paulo. Muita paz pra você e sua família.
- Muito obrigado por tudo, Dona Célia. Até logo.
- Até.

Desligou o telefone e voltou a dormir, acabara de ganhar uma semana de folga.

Acordou meio-dia e pensou no que faria nessa semana, sua mulher estava viajando a trabalho e só voltaria em onze dias, teria a própria vida para si finalmente. Ficou encarando a pasta que levava para o trabalho e organizando a agenda do dia, logo decidiu ficar em casa, pedir comida chinesa e alugar Duro de Matar 1 e 2.

Que belo primeiro dia de recesso espiritual.

No dia seguinte, acordou uma e meia da tarde com um barulho. Levantou em um pulo - ainda com a essência de yakisoba no corpo e de Bruce Willis na mente - e foi verificar o que estava acontecendo com uma latinha de cerveja à mão, possivelmente para se proteger. Um vulto! Voltou correndo para o quarto e deixou escapar o barulho de uma leve cabeçada na porta. Então uma voz assustadora:

- Amor?

Calmamente, chegou à conclusão: p%&* que pariu!

Sua mulher voltara de viagem mais cedo - bem mais cedo.

- Oi, amor. O que você está fazendo aqui?
- Vim assim que soube, Paulo.
- Por deus, mulher, e como você soube? - tentando não demonstrar desespero.
- Liguei para o seu trabalho procurando por você e Dona Célia me disse o que havia acontecido. Tentei ligar para você, mas o celular só dava desligado e o telefone de casa ocupado.
- É que eu desliguei o celular e tirei o telefone do gancho pois não aguentava mais que me lembrassem da morte de titia - acabara de matar uma tia.
- Eu entendo, Paulo - segurou-o entre os braços -, e quando você viaja?
- Dona Célia falou isso também? - fazendo as contas de quanto gastaria com as passagens.
- Falou sim, ela se mostrou preocupada, disse nunca ter ouvido sua voz daquele jeito.
- É a tristeza - falou pensando no sono que estava quando ligou -, mas eu planejo viajar hoje de noite.
- Minhas malas já estão arrumadas e..
- Opa! Desculpa, mas você não vai - sem pensar.
- Mas por que?
- É que.. - pensa, Paulo -. É que.. - mais rápido, Paulão! -. É que eu preciso me despedir sozinho por tudo que ela me fez, você não tem idéia do quanto aquela mulher foi boa pra mim, um anjo! - parabéns, Paulo, acabou de aumentar a história.
- Nossa, não sabia que você era tão próxima dessa tia... Qual o nome mesmo?
- Marinalva - que nome é esse, Paulo?! Vai pelo menos lembrar depois? -, mar e alva.
- Posso perguntar o que ela fez por você?

Os próximos dez minutos foram preenchidos por histórias maravilhosas. A saga de tia Marinalva, uma santa, a mulher que cuidou de Paulo até os 14 anos... E um pouco de explicação:

- Mas você não estudou em um colégio interno até os dezesseis?
- É... Isso é o que todos pensam! Titia me tirou de lá quando tinha quatro anos pois sabia que me maltratavam!
- E o que você fez dos quatorze aos dezesseis pra sobreviver, já que ela só cuidou até os quatorze?
- Posso terminar a história? - ríspido.

Depois, Paulo contou da vez que a tia o salvou do Seu Tonho, um vizinho mal-encarado que queria surrá-lo, nunca havia visto uma mulher tão valente. Falou que a tia o ensinara a assobiar, empinar pipa, jogar bola, andar de bicicleta. Foi pai, mãe, irmã, irmão, avô e vó! Tudo em uma só mulher especial.

- Ela parecia ser uma mulher impressionante, querido.
- Ah, se era! Uma mãe pra mim - lágrimas.
- Tudo bem, amor, não precisa chorar. Você vai se despedir da sua tia e quando chegar estarei aqui te esperando, tá? E dê notícias enquanto estiver lá.
- Obrigado pela compreensão, Lúcia, significa muito pra mim.

Se abraçaram e Paulo foi fazer as malas.

Mais tarde, se despediram e o recém-querido sobrinho foi direto para um hotel do outro lado da cidade, onde pagou cinco diárias. Ligava uma ou duas vezes por dia para a mulher para falar como estava indo tudo. No primeiro:

- Oi, Lú! Cheguei aqui, desculpa não ter ligado antes, é que eu não queria te acordar e ainda precisava pegar o carro pra chegar à cidade de titia.
- Tudo bem, fiquei um pouco preocupada, mas imaginei que você não podia ligar ainda.
- Só liguei pra dizer que cheguei bem mesmo, estou indo ao IML improvisado aqui na cidade pra liberar o corpo pra funerária começar os arranjos da cremação, era um desejo de titia. Até mais, amor.
- Até! Qualquer coisa, só ligar!

Voltou a dormir. Acordou três horas depois, pediu comida do restaurante do hotel, comprou o pacote de canais adultos e teve o resto da tarde bem tranquila.

No segundo dia, aproveitou uma cena de enterro na televisão com muito choro e ligou para a mulher.

- Oi, amor!
- Oi, Paulo. Como estão as coisas? Quem é essa gente chorando?
- Ah, titia era muito querida por aqui, você não faz idéia - barulho de choro na TV.
- Nossa, gostaria muito de tê-la conhecido.
- É, queria que você tivesse a oportunidade também. Olha, amor, tenho que ir agora, tá bom? - acabara a cena do funeral e estava entrando uma outra com a viúva e o padre tirando a roupa.
- Tá bom, amor. Beijo.
- Tchau.

No terceiro, não ligou. Mas no quarto pôde explicar o motivo:

- Lú, não liguei ontem porque precisava de um tempo sozinho com os restos de tia Marinalva. Hoje de manhã, me despedi de vez e joguei as cinzas no poço perto da casa dela. Foi muito difícil.
- Percebi pela sua voz, amor, rouca e triste.
- É, mas estou melhor já, foi bom poder me despedir dela - colocando uma aspirina na boca e pensando que noite tivera ontem no bar do hotel.

Passou o resto do dia em uma feira de peças antigas procurando uma urna que parecesse ter abrigado os restos mortais de sua tia, pensou em guardar e levar para sustentar a história. Achou uma de 1938 por apenas $50, um ótimo negócio.

No dia seguinte, chegou em casa com a urna debaixo dos braços e uma expressão de "missão cumprida". Abraçou calorosamente a esposa e disse:

- Percebi o quanto você me faria falta, amor. Amo muito você!
- Ah, amorzinho! Também te amo muito!

E pôde ficar tranquilo que ela nunca desconfiaria.

No dia seguinte, voltou a trabalhar e contou à Dona Célia as histórias maravilhosas de tia Marinalva, logo começou a reunir todos do escritório para ouvi-lo. Alguns chegaram a chorar quando contou a história do dia em que titia o ajudou a salvar um lindo filhote de labrador dos irmãos Figueira, os dois valentões da cidade. Até o chefe, o Sr.Marcos, pôs a mão em seu ombro e disse:

- Filho, tenho certeza que sua tia está orgulhosa do homem que se tornou!

Um mês depois, foi promovido. Titia o ajudava até depois da morte. Ascendeu rapidamente na empresa. A esposa ficara ainda mais apaixonada após conhecer a saga de Marinalva. Logo tiveram um filho. Dois anos depois, outro. Uma linda família.

E os filhos cresceram. Um tem 16 anos e o outro 14, nesse exato momento, Paulo, Lúcia, Mário Alvo - em homenagem à tia - e Paulinho - mais novo - estão reunidos no quintal com a família do ex-chefe, hoje sócio. Paulo conta histórias incríveis sobre sua tia. Já são 18 anos desde que ela se foi e os amigos, filhos e a esposa nunca cansam de ouvi-lo. Já até repete histórias, hoje está contando sobre o Seu Tonho.

- Ah, o Seu Tonho, um bom homem, mas odiava crianças e eu vivia entrando na fazenda dele pra roubar goiaba. Vocês lembram da vez que... - e todos dizem que não, mas já ouviram a história mais de dez vezes.


E essa história fica por aqui, todos já foram dormir e Paulo está ajoelhado em frente à urna da tia pedindo proteção, assim como faz toda noite, até quando ninguém vê.


Hoje ninguém desconfia que a Tia Marinalva nunca existiu, inclusive ele.

quarta-feira, abril 04, 2007

Vizinhos

O alarme toca. Seis horas da manhã, hora de acordar. Seu Luís olha o relógio, dá o característico tapinha no botão para desligar, o barulho continua. Esfrega as mãos no rosto, acorda de verdade, associa esse som irritante e conclui o mesmo de todas as manhãs:

- Maldito seja esse mal-amado!

Seu Luís se referia a Jorge, um ex-coronel da aeronáutica de setenta e dois anos que serviu na Segunda Guerra. Seu vizinho há vinte, dos quais seu Luís passou dezenove anos e onze meses planejando como matá-lo. No primeiro mês de mudança, seu Jorge estava muito ocupado arrumando tudo, então era impossível saber que ele usaria esses dezenove anos e onze meses seguintes dando motivos para tal dedicação.
Não seria qualquer morte, mas algo torturante, muita dor, dor. Mais dor! Respiração, calma, relaxamento.. DESCARGA NINJA DE DOR INSUPORTÁVEL(a parte favorita dele)! Repete-se o ciclo 5 vezes e, finalmente, morre. Essa seria a fórmula do assassinato perfeito para o velho implicante que seu Luís havia desenvolvido em todos esses anos. O que o impedira de executá-la várias vezes foi não ter achado uma solução para fazer parecer um acidente, não queria incriminar quem não tivesse nada a ver com a história.
Até que numa noite de chuva, mudou de idéia, incriminaria alguém já que não existia outra solução, livraria-se do encosto a qualquer preço. O velho Jorge havia aprontado outra: enquanto seu vizinho saíra, pegou todos os sacos de lixo próximos e colocou na garagem de seu Luís, quando esse chegou, precisou descer do carro - na chuva, lembre-se - para tirar os dez sacos. Mas quisera ele ter sido simples assim, o ex-coronel havia rasgado o fundo de todos os sacos. Não é preciso dizer que seu Luís levou mais de vinte minutos pra tirar todo aquele lixo de sua garagem. Tudo enquanto seu vizinho, sentado na varanda apreciando o show, tomava uma xícara de café bem quente com prazer estampado no rosto, não mudando a expressão nem quando se queimou.
Seu Luís nem trocou de roupa. Sentou em sua poltrona e pôs-se a pensar alto:
- Um tiro.. Não, muito comum. Trezentos e cinquenta e sete facadas.. Não, muito cansativo. Já sei! Um susto! Um belo susto!
Dormiu como nunca havia dormido antes, ignorou os três papagaios que seu Jorge fazia questão de colocar perto de sua janela, os dois cachorros que discutiam a noite inteira.
Acordou com um sorriso, mesmo que tenha sido às 4:30 da manhã com um telefonema "anônimo":

- Alô? - disse seu Luís.
- Alô! - disse a voz.
- Quem fala?
- Agora eu, é minha vez.
- Gostaria de falar com quem?
- Com você, não mora mais ninguém aí.
- E você sabe quem eu sou?
- Não, mas posso te indicar um bom detetive pra você descobrir.
- O mesmo que descobriu que a tua mulher te traía?

Clic.

Estava de bom humor, era impossível negar. Saiu às oito horas com a sua melhor roupa e foi ao shopping. Passou uns minutos tentando se lembrar em que parte ficava aquela loja de fantasias. "Seria no segundo andar?". Não conseguia lembrar, mas era um dia feliz, então não teria problema colocar a dignidade - ou a teimosia, você escolhe - de lado e perguntar de alguém.

- Fica no segundo andar, do lado do quiosque de pretzel. E quando você passar ali, aproveita e pega uma amostra! Hoje estão servindo o de goiaba, o melhor de todos, levemente doce, incrivelmente suave, algumas pessoas dizem que o melhor é o..

Ouviu durante dois minutos e meio porque, afinal, era um dia feliz. Agradeceu, sorriu e seguiu seu caminho em direção à loja. Passou pelo quiosque de pretzel, provou o de goiaba - que era realmente muito bom - e entrou na "Fantasias da Vovó", pensou em alguns trocadilhos, duplos sentidos, mas logo focou seu objetivo principal outra vez.

- Você tem algum uniforme da Gestapo? - perguntou.
- Hein? - respondeu o atendente de forma objetiva.
- Da Gestapo.
- Em que filme apareceu esse monstro? É tanta fantasia que me confunde.
- Tem algum uniforme nazista?
- Ah, esse tem sim! Só um minutinho que eu vou pegar.

Enquanto esperava, olhou à sua volta imaginando porque alguém se fantasiaria de uma esponja amarela que usa bermuda. Vai entender esse mundo de hoje, né, seu Luís?

- Achei - retorna o atendente.
- Perfeita - observa -, quanto?
- Alugar ou comprar?
- Comprar - pensou que valeria a pena ter como lembrança.
- Comprar sai por duzentos.
- Duzentos numa fantasia?
- Mas essa tem até aquela plaquinha com as cobrinhas dentro, a "swat" - apontando pro símbolo nazista.
- Huuuum - seu Luís respira, conta até dez, imagina um lindo campo verde com céu azul -, tá, eu vou levar, já que essa tem até a "swat".

Saiu da loja um pouco estressado, lembrou do que faria mais tarde, sorriu outra vez. Pegou outro pedaço de pretzel, sorriu ainda mais. Chegou em casa, sentou na poltrona - ainda úmida devido ao dia anterior -, viu um pouco de TV, perguntou-se outra vez qual o sentido de uma esponja amarela de bermuda e esperou calmamente até que o relógio mostrasse duas e meia da manhã.
Vestiu o uniforme da Gestapo, colocou um bigode falso imitando Hitler, pegou um velho rifle seu que nunca funcionou, caminhou em direção à casa de seu Jorge, entrou pela porta dos fundos - ele sempre deixou a chave no vaso de plantas -, dirigiu-se ao quarto, encontrou a vítima deitada como havia imaginado.
O führer ficou em pé na cama, apontou o rifle que não funciona para seu inimigo, encheu os pulmões e:

- INVASÃO NAZISTA! AH!

Nada.

- PERIGA ALEMON!

Nada.

Estranho. Pôs a mão sobre a carótida. Não respirava. Começou a bater no peito do morto com raiva, gritando, acordou os vizinhos, os vizinhos chamaram a polícia, a polícia chegou, achou seu Luís armado em cima do cadáver. Foi preso em flagrante, homicídio doloso.

...

Dizem as más línguas que ficou preso por apenas dois anos até perceberem que não deveria estar ali, só então foi mandado a um hospital psiquiátrico onde repete sem parar, ainda com o bigode do führer:

- Maldita seja esse mal-amada!

domingo, abril 01, 2007

A história de Roberto

Roberto era um cara simples e calmo. Nunca precisou levantar a voz pra ninguém. Quer dizer, precisou várias vezes, mas não quis, Roberto não era desse tipo que perdia a paciência. Nem quando sua mulher costumava passar tempo demais com aquele professor argentino de tênis e mesmo assim sempre gritava "gol" quando fechava um game. Para se ter uma idéia, Roberto era tão simples e calmo que a incentivava dizendo que nesse ritmo ela poderia disputar a Taça Guanabara. Que homem compreensivo!
Mas e quando furaram os quatro pneus do carro dele na universidade em que dá aula? Correu atrás dos dois vândalos, os segurou pelos braços e os obrigou a dizer que nunca mais fariam isso! Fez até jurarem! Conferiu inclusive se estavam cruzando os dedos! Olha, nesse dia me enganei pensando que Roberto havia mudado e nunca mais seria aquele homem passivo.
Mas no dia seguinte.. Ah! O dia seguinte.
Andando na rua - acreditem no que vou contar! -, um rapaz perguntou as horas ao Betão:
- Com licença. Você tem horas, amigo?
- Tinha! - falou tirando o relógio e já puxando a carteira enquanto descalçava os sapatos.

Eu ainda acreditava que mudaria apesar de tudo. E mudou. Finalmente, nosso ilustre personagem - que eu juro ser fictício! - estava no shopping e entrou em uma loja de moda feminina. Não, não era pra ele mesmo, apenas planejava comprar algo bonito para sua mulher, que, por coincidência, veja como esse mundo é pequeno, era também a mulher do professor argentino de tênis, do instrutor da auto-escola que ela fazia aulas de direção há 2 anos, entre outros.
Bem, continuando... Roberto escolheu um lindo e atraente baby doll vermelho e, enquanto esperava no balcão que a transação com o cartão de crédito fosse concluída, a atendente tomou iniciativa:
- É difícil achar homens assim hoje em dia, que lembram da mulher - descansando a mão em cima da mão de Roberto.
- É o que dizem - sem mudar a expressão facial.
- Eu só encontro cafajestes! Quando acho um gentil, deixo escapar, mas queria muito mudar isso - chegando mais perto.

Congelem a imagem! É aqui que a história muda!
Chega desse Roberto que aceita tudo o que impõem! Um novo homem surge em seu pônei branco!

Play.

Um corte na edição.
Entra cena de nosso herói deixando a loja - visão de suas costas.
Corta para a imagem de seu rosto.
Nem levou o baby doll, saiu da loja ofendido!
Indignado! Estarrecido! Abobalhado - sem trocadilhos, juro!

Tá certo, Roberto! Não respeitam mais nem os casados!
Que homem!

quarta-feira, março 28, 2007

E a morte, como ela é?

E dizem que ele morreu de susto. Pouco se sabe sobre o que o assustou, mas sabe como é, muito se fala sobre o que deve ter sido.
Foi encontrado com as mãos sobrepostas em cima do coração, ou em cima de onde ele achava que ficava o coração, era um pouco mais pra direita. Minha direita.
Alguns arriscam que não suportou o boato que sua namorada de infância ia casar, e o nome disso seria amor. Só que donas-de-casa depois da novela das oito adoram um triângulo amoroso.
Por outro lado, os mais céticos retrucam e afirmam categorigamente que foi um trote telefônico pedindo mil reais para não revelar que tinha um gosto por se vestir de gazela e fugir do malvado caçador.
Os despreocupados dizem que foi somente um ataque do coração, afinal, 66 anos tornam isso possível. Ah! Simples demais.
Ainda existem aqueles que põem a mão no fogo pela teoria de que foi um duende maldoso. Enfim, nunca confiei muito nos hippies.
Os jornais falavam sobre um novo tipo de vírus que, aparentemente, vai devastar o mundo. Até pior que os dez anteriores que também fariam isso.
Só que bonito mesmo foi quando alguns discursaram dizendo ter morrido por um ideal, pois não suportava mais a opressão dos urubus da democracia, morreu com a mão no coração que sofria pela pátria! Malditos vermelhos! Sempre me deixam emocionado.
Senti um calafrio quando certos vizinhos juraram por tudo que há de mais sagrado - com a carteira na mão, faça-se notar - que fizera um pacto com o demônio e esse levou sua alma tarde demais inclusive. Tá amarrado.

Particularmente, prefiro uma outra versão envolvendo um dragão, um pirocóptero e Jack Bauer. Que se dane o laudo médico dizendo que se entalou com a própria dentadura!

quarta-feira, março 21, 2007

Ataraxia

Já nem diferencio onde começo e onde termino.
A profundidade do que sou fica acima da superfície, fácil ser.
Me resumo a uma só extremidade.
Nem permito o ter e não ter, sentir e não sentir.
De maniqueísta, já basta qualquer deus e suas criaturas antagônicas natas.

Sou um meio-termo em oposição, seja o que isso for.
Apatia exposta seja como for.
Uma dose de pessimismo em uma celebração realista.

Altruísmo? Como se fizesse sentido...
Nunca vi mártir vivo.
Os heróis estão mortos ou têm sangue de nanquim.

Isso resume.
Manifesta.

Ataráxico.
Por situação.
Então pode engatilhar seus problemas de festim e atirar.

Já?

sábado, março 10, 2007

Umbral

Talvez se o dia não tivesse amanhecido, se eu tivesse deixado uma luz acesa pra iluminar o quarto.
Se eu não tivesse atendido aquele telefonema, talvez nada tivesse mudado. Não sei, das poucas certezas que tivera, só resta a de que nunca será.
Mudar a rotina? Me importar um pouco mais?

Tanto ficou preso, engatilhado, agora em eterno processo de decomposição. Tantas frases não ditas, tantas verdades esquecidas, tantos momentos perdidos.
Na solidão, o orgulho não tem lugar a ocupar. Corrompe qualquer pensamento futuro.

E se..

E se eu tivesse procurado mais cedo? Mudaria em mim? Mudaria em você?
E se você tivesse me procurado? Mudaria em mim? Mudaria em você?
E se tudo fosse diferente, que valor você teria? Que valor eu teria?

Talvez seja isso afinal, seu valor se resume a um arrependimento.

E se eu pudesse dizer adeus e guardar um pouco de você?
E se tudo tivesse sido diferente, eu estaria aqui?
Deixando um pouco de mim..

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Saudade e um pouco de hoje

(Saudade)
Sabe aquele dia em que você tem um surto de consciência e pára o mundo por alguns segundos só pra entender algo em sua mente?
É aquele dia que quebra sua rotina. É aquele pensamento que vem tomando conta de você há certo tempo, mas se encontrava perdido em reações mecânicas, sem pensar. Talvez inconscientemente você se jogou nesse hoje que parece ontem, assim como amanhã - sem resistência - vai parecer. Quem sabe esteja se protegendo do que está por vir, uma resposta comum ao medo que sente do que tem evitado.
É. E o tempo preciso pra que aquele sentimento ocupe sua mente é extremamente curto e repentino. Acontece nos momentos mais inesperados. Dirigindo e cantando uma música enquanto as idéias se conectam e chegam ao lugar indesejado. Trabalhando e pensando nas horas seguintes. Andando, olhando o caminho e, na curva seguint, você encontra sua sombra. Ela chegou primeiro. Pronto. Arranjou companhia para os próximos dias.
Você e seus pensamentos. O mundo gira ao contrário e o passado é formado por quadros em exposição no seu caminho. Incontáveis e memoráveis cenas. Estáticas. Lembranças. Só.
Fraturas expostas, conquistas escondidas. A cada quadro, o ar fica rarefeito, as paredes se aproximam, o corpo retrai. Tudo pra justificar essa dor no peito, esse aperto, essa vontade de implodir em silêncio. Tudo tem uma história, cada verso de uma certa canção, cada esquina de uma certa rua, cada palavra de um certo texto, cada parte de tudo que o passado faz presente. É impossível se livrar de um certo sentimento que ficou sem ser resolvido. Um vazio que não é ocupado, mas que pesa como o fim de um dia.
Planos futuros já não parecem importar se o hoje nunca revela um amanhã. Então, entre desejos, segredos e mentiras, você se agarra a uma expectativa que não existe, mas não faz diferença saber o que é real e o que não é se cada passo é mera reprodução de um outro anteriormente dado.

...

(Um pouco de hoje)
Mas eventualmente você percebe que andando devagar é possível parar, fazer a volta, e seguir no sentido horário.

sábado, fevereiro 10, 2007

Caelum Felicitas

Eram todos brilhantes segundo o que minha memória diz sobre aquele lugar. Transpareciam suavidade e uma expressão impossível de ser reconhecida. Talvez porque não tivessem, de fato, face expressiva, mas eram um só em sintonia.
Todos podiam voar além de percepções terrenas e simplesmente ignorar com a mais pura inocência uma realidade que esperava calmamente a hora de consumi-los. Eram todos aparentemente diferentes, mas percebiam coisas iguais, de modos iguais, com sentimentos iguais. Não eram anjos, não poderiam ser, muito menos deuses, pois eram tão imperfeitamente esculpidos, não em forma física, mas em seu interior, no que só cada um deles poderia - e deixava de - ser. Sem nuances de personalidade, eram todos cegos, mas enxergavam um mundo, eram, acima de tudo e por essa razão, felizes. Simplesmente sentiam uma estúpida alegria que não sentiriam em nenhum outro lugar, mas apenas em seus refúgios secretos dentro de sonhos.

Não posso e nem devo nomear esse lugar, pois passei por ele em sonhos que ainda não tive, mas cabe a mim encontrar e chamar de lar, realidade ou doença passageira.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Casual

- Olá.
- Nem adianta, já perdi a fé em você. Vocês.
- E quem seríamos nós?
- Você sabe.
- É, costumo perguntar o que já sei pelo prazer de perder tempo.
- 'Tá sendo sarcástico?
- Só se você não entendeu..
- Mas olha, não adianta mesmo, eu não quero.
- Não lembro de ter oferecido nada.
- Você planejava falar algo agradável sobre minha pessoa e sair comigo daqui.
- Moça, eu não sou um livro de auto-ajuda para lhe falar coisas doces e acabei de chegar, não planejo sair.
- Você é sempre grosso assim, seu idiota?
- Não, só com pessoas que não sabem o que responder a um "Olá".
- A culpa não é minha se vocês são iguais, nós todas sabemos que vocês são iguais.
- Se vocês todas sabem e concordam com isso, isso faz de vocês todas iguais também..
- É diferente..
- Claro, suas regras não se aplicam a você.
- Não mesmo, eu sou diferente.
- Diferente de uma pessoa que sabe conversar, concordamos enfim.
- Não sei conversar? E o que estamos fazendo agora?
- O que estamos fazendo agora? Bem, estou a caminho de outra mesa pra pedir uma cadeira emprestada, quanto a você, acredito que terá uma ótima noite com essa vazia ao seu lado.

sábado, janeiro 20, 2007

Um dia qualquer

"Talvez um triste fim. É. Disso que eu preciso.
Um pouco de drama não faz mal a ninguém, ou faz?
Bem, se faz, tanto faz. Assim como tanto fez.
Afinal, meu drama não é um pedido de atenção, meu drama é uma poesia, um poema. Até prosa quando deixo.
Meu drama é um ritmo, um ritmo de alguém, mas quem?
Bem, quem quer que seja, deve ter me tratado com desdém. Então, trato como ninguém.
Mas parece tão difícil esquecer o pouco que se tem.

Por isso, sigo meu ritmo. Ou seu ritmo.
Não sei.
Acho que me perdi entre tudo e nada agora. Mas não foi lá que encontrei você?
Parte entre tudo, resto sobre nada. Em tudo, via seu sorriso, mas nada parecia suficiente.
E como seria?
O cotidiano insistia em desenhar seus jeitos no caminho.
Com defeitos, mas, enfim, ainda seus jeitos.
E eu?
Eu insistia em me enganar por todo o caminho, aceitava qualquer forma de carinho.
Tão estranho se contentar com o pouco que não se tem. Não mais.

E agora?
Bem, agora continuo meu ritmo, só meu, outrora seu.
E o que me resta?
Pensamentos vazios.
Perdidos entre tudo e nada em um dia qualquer.

Meu ou seu?"