segunda-feira, abril 06, 2009

Quem matou Borges Costa?

(não é a crônica que esperam de mim, mas mais crônica que isso, impossível)

Quem matou Borges Costa?

"A vida é o acaso", costumava dizer Borges Costa.
Todo dia, o dia todo, o acaso. As pessoas, as relações, o acaso. Mas nem sempre foi assim.
Aquela fotografia de vida atrás distorcia o tempo apenas o suficiente para que não se lembrasse ou se reconhecesse nela. Nem sequer imaginava que já pôde ser uma criança com um carretel na mão e uma pipa no ar. Ou um par de chuteiras, uma bola e a maior torcida do mundo em volta daquele grande campo de futebol decorado com os balões da festa de aniversário do dia anterior.

Esse nunca foi Borges Costa, até onde sabe. E quem seria Borges Costa?

Talvez o garoto ao fundo de uma das fotografias, que observava os pais e os filhos se divertirem. Ou o outro bem no canto superior daquela outra fotografia, gentilmente cortado ao meio junto com seu violão. Se esse fosse Borges Costa, ele tem certeza que não haveria ninguém ao seu lado se pudéssemos vê-lo por inteiro. Era o observador que saberia dizer quem está mentindo só de ouvir a voz ou olhar nos olhos, era o comentarista dos melhores telejornais de sua imaginação. Era o agente secreto que não fazia idéia se queria ser para investigar sua outra metade ou pra fugir da exposição. Para os outros, claro, era o tímido. Mas não era, sabia que não era. Preferia introspectivo. Seu problema não era o medo de falar, era o medo do que acontece depois que se fala. "Só existe traição se existir confiança", então achava melhor descobrir os outros sem a expectativa e a possibilidade de ser decepcionado, apenas observando.

Mas esse é o Borges Costa hoje, fotografias atrás era diferente, bem diferente. Falava. Muito. E bem alto, o tempo inteiro. Era aquele que comemorava o gol simplesmente porque um gol precisa ser bem comemorado, que perdia a pipa no ar e ria porque o domingo deveria ser feito de risos pra amenizar a manhã de segunda. Era o que se imaginava o melhor agente secreto do mundo, não porque queria fugir ou descobrir seu outro lado, mas porque ele poderia salvar todas as pessoas, porque era o destino dele ser bom. Sim, o destino, não acreditava nem aceitava o acaso. Era um sonhador e cada sonho era a página de um livro que ele poderia escolher ler ou não.

Não aceitava que já pôde ser assim, porque se já foi, por que não é mais? Por que a luz projeta sua sombra em cores e o espelho reflete traços de cinza? Preferia não pensar mais nisso. Melhor aceitar a estrada como ele a enxergava. Sem caminho à frente até que se dê o passo seguinte e, com certeza, sem retornos. Porque não queria retornos, não queria se ver diferente. Não queria, em hipótese alguma, se perguntar por que não é mais. Se já foi, por que não pode mais ser?

Então, quem matou Borges Costa? E quem o matou, matou por inteiro, ou matou a metade que não era possível ver na antiga fotografia?

Bem, Borges Costa sabia quem o matou, a imagem estava em um porta-retrato logo atrás de seus olhos, era o que usava para filtrar o mundo. Agora, quanto ao que matou? Tanto faz, não considerava que poderia viver sem a metade perdida, seria só instinto de sobrevivência o que viesse a seguir. O que ele não sabe, é que o que veio a seguir, não era só instinto de sobrevivência, ainda havia um pouco daquela metade esquecida em si. Afinal, por que outros motivos protegeria quem o matou? Precisava protegê-lo porque era a única maneira de nunca perder essa metade. Porque era sua salvação, ou redenção. Porque um dia precisaria saber o motivo, e não poderia descobrir se não o protegesse. Porque era seu melhor amigo. E isso é o que melhores amigos fazem, protegem uns aos outros. Pelo menos, acreditava que sim.

De vez em quando passa pela sua cabeça por que seu melhor amigo teria feito aquilo, se eles deveriam se proteger. Mas nunca pensava em responder ou considerar uma resposta, porque, no fundo, sabia que seu amigo teria uma boa justificativa, e tudo ficaria bem de novo. Ele poderia - de novo - ser um dos garotos que brincam com os pais nas antigas fotografias de domingo, e não um dos que ficam esquecidos e ao fundo. Ou acreditava que poderia ser tudo isso outra vez.

Quem seria capaz de tirar esse último sonho de Borges Costa? Já haviam tirado tanto com um único golpe pontiagudo no coração. Já era tão difícil respirar com um ar pesado de desconfiança que o rondava. Já era impossível manter as batidas - do que sobrou desse coração - regulares, ou os pensamentos. Eram sempre sem rumo, perdidos, com medo uns dos outros, do que sabiam que poderiam trazer no momento seguinte. Decepção e um epitáfio. Sabiam, inclusive, muito bem o que traria escrito esse epitáfio:

"Quem matou Borges Costa?".

E essa pergunta, jurava, jamais vai querer responder.

.