sexta-feira, abril 13, 2007

Um dia de folga

- Pois é, foi um parente muito próximo e preciso viajar pra cuidar dos arranjos funerários - disse pelo telefone à secretária do escritório.
- Tudo bem, avisarei o Sr.Marcos. Quando você volta?
- Provavelmente em sete dias.
- Ok, assim que ele chegar, aviso. Meus pêsames, Paulo. Muita paz pra você e sua família.
- Muito obrigado por tudo, Dona Célia. Até logo.
- Até.

Desligou o telefone e voltou a dormir, acabara de ganhar uma semana de folga.

Acordou meio-dia e pensou no que faria nessa semana, sua mulher estava viajando a trabalho e só voltaria em onze dias, teria a própria vida para si finalmente. Ficou encarando a pasta que levava para o trabalho e organizando a agenda do dia, logo decidiu ficar em casa, pedir comida chinesa e alugar Duro de Matar 1 e 2.

Que belo primeiro dia de recesso espiritual.

No dia seguinte, acordou uma e meia da tarde com um barulho. Levantou em um pulo - ainda com a essência de yakisoba no corpo e de Bruce Willis na mente - e foi verificar o que estava acontecendo com uma latinha de cerveja à mão, possivelmente para se proteger. Um vulto! Voltou correndo para o quarto e deixou escapar o barulho de uma leve cabeçada na porta. Então uma voz assustadora:

- Amor?

Calmamente, chegou à conclusão: p%&* que pariu!

Sua mulher voltara de viagem mais cedo - bem mais cedo.

- Oi, amor. O que você está fazendo aqui?
- Vim assim que soube, Paulo.
- Por deus, mulher, e como você soube? - tentando não demonstrar desespero.
- Liguei para o seu trabalho procurando por você e Dona Célia me disse o que havia acontecido. Tentei ligar para você, mas o celular só dava desligado e o telefone de casa ocupado.
- É que eu desliguei o celular e tirei o telefone do gancho pois não aguentava mais que me lembrassem da morte de titia - acabara de matar uma tia.
- Eu entendo, Paulo - segurou-o entre os braços -, e quando você viaja?
- Dona Célia falou isso também? - fazendo as contas de quanto gastaria com as passagens.
- Falou sim, ela se mostrou preocupada, disse nunca ter ouvido sua voz daquele jeito.
- É a tristeza - falou pensando no sono que estava quando ligou -, mas eu planejo viajar hoje de noite.
- Minhas malas já estão arrumadas e..
- Opa! Desculpa, mas você não vai - sem pensar.
- Mas por que?
- É que.. - pensa, Paulo -. É que.. - mais rápido, Paulão! -. É que eu preciso me despedir sozinho por tudo que ela me fez, você não tem idéia do quanto aquela mulher foi boa pra mim, um anjo! - parabéns, Paulo, acabou de aumentar a história.
- Nossa, não sabia que você era tão próxima dessa tia... Qual o nome mesmo?
- Marinalva - que nome é esse, Paulo?! Vai pelo menos lembrar depois? -, mar e alva.
- Posso perguntar o que ela fez por você?

Os próximos dez minutos foram preenchidos por histórias maravilhosas. A saga de tia Marinalva, uma santa, a mulher que cuidou de Paulo até os 14 anos... E um pouco de explicação:

- Mas você não estudou em um colégio interno até os dezesseis?
- É... Isso é o que todos pensam! Titia me tirou de lá quando tinha quatro anos pois sabia que me maltratavam!
- E o que você fez dos quatorze aos dezesseis pra sobreviver, já que ela só cuidou até os quatorze?
- Posso terminar a história? - ríspido.

Depois, Paulo contou da vez que a tia o salvou do Seu Tonho, um vizinho mal-encarado que queria surrá-lo, nunca havia visto uma mulher tão valente. Falou que a tia o ensinara a assobiar, empinar pipa, jogar bola, andar de bicicleta. Foi pai, mãe, irmã, irmão, avô e vó! Tudo em uma só mulher especial.

- Ela parecia ser uma mulher impressionante, querido.
- Ah, se era! Uma mãe pra mim - lágrimas.
- Tudo bem, amor, não precisa chorar. Você vai se despedir da sua tia e quando chegar estarei aqui te esperando, tá? E dê notícias enquanto estiver lá.
- Obrigado pela compreensão, Lúcia, significa muito pra mim.

Se abraçaram e Paulo foi fazer as malas.

Mais tarde, se despediram e o recém-querido sobrinho foi direto para um hotel do outro lado da cidade, onde pagou cinco diárias. Ligava uma ou duas vezes por dia para a mulher para falar como estava indo tudo. No primeiro:

- Oi, Lú! Cheguei aqui, desculpa não ter ligado antes, é que eu não queria te acordar e ainda precisava pegar o carro pra chegar à cidade de titia.
- Tudo bem, fiquei um pouco preocupada, mas imaginei que você não podia ligar ainda.
- Só liguei pra dizer que cheguei bem mesmo, estou indo ao IML improvisado aqui na cidade pra liberar o corpo pra funerária começar os arranjos da cremação, era um desejo de titia. Até mais, amor.
- Até! Qualquer coisa, só ligar!

Voltou a dormir. Acordou três horas depois, pediu comida do restaurante do hotel, comprou o pacote de canais adultos e teve o resto da tarde bem tranquila.

No segundo dia, aproveitou uma cena de enterro na televisão com muito choro e ligou para a mulher.

- Oi, amor!
- Oi, Paulo. Como estão as coisas? Quem é essa gente chorando?
- Ah, titia era muito querida por aqui, você não faz idéia - barulho de choro na TV.
- Nossa, gostaria muito de tê-la conhecido.
- É, queria que você tivesse a oportunidade também. Olha, amor, tenho que ir agora, tá bom? - acabara a cena do funeral e estava entrando uma outra com a viúva e o padre tirando a roupa.
- Tá bom, amor. Beijo.
- Tchau.

No terceiro, não ligou. Mas no quarto pôde explicar o motivo:

- Lú, não liguei ontem porque precisava de um tempo sozinho com os restos de tia Marinalva. Hoje de manhã, me despedi de vez e joguei as cinzas no poço perto da casa dela. Foi muito difícil.
- Percebi pela sua voz, amor, rouca e triste.
- É, mas estou melhor já, foi bom poder me despedir dela - colocando uma aspirina na boca e pensando que noite tivera ontem no bar do hotel.

Passou o resto do dia em uma feira de peças antigas procurando uma urna que parecesse ter abrigado os restos mortais de sua tia, pensou em guardar e levar para sustentar a história. Achou uma de 1938 por apenas $50, um ótimo negócio.

No dia seguinte, chegou em casa com a urna debaixo dos braços e uma expressão de "missão cumprida". Abraçou calorosamente a esposa e disse:

- Percebi o quanto você me faria falta, amor. Amo muito você!
- Ah, amorzinho! Também te amo muito!

E pôde ficar tranquilo que ela nunca desconfiaria.

No dia seguinte, voltou a trabalhar e contou à Dona Célia as histórias maravilhosas de tia Marinalva, logo começou a reunir todos do escritório para ouvi-lo. Alguns chegaram a chorar quando contou a história do dia em que titia o ajudou a salvar um lindo filhote de labrador dos irmãos Figueira, os dois valentões da cidade. Até o chefe, o Sr.Marcos, pôs a mão em seu ombro e disse:

- Filho, tenho certeza que sua tia está orgulhosa do homem que se tornou!

Um mês depois, foi promovido. Titia o ajudava até depois da morte. Ascendeu rapidamente na empresa. A esposa ficara ainda mais apaixonada após conhecer a saga de Marinalva. Logo tiveram um filho. Dois anos depois, outro. Uma linda família.

E os filhos cresceram. Um tem 16 anos e o outro 14, nesse exato momento, Paulo, Lúcia, Mário Alvo - em homenagem à tia - e Paulinho - mais novo - estão reunidos no quintal com a família do ex-chefe, hoje sócio. Paulo conta histórias incríveis sobre sua tia. Já são 18 anos desde que ela se foi e os amigos, filhos e a esposa nunca cansam de ouvi-lo. Já até repete histórias, hoje está contando sobre o Seu Tonho.

- Ah, o Seu Tonho, um bom homem, mas odiava crianças e eu vivia entrando na fazenda dele pra roubar goiaba. Vocês lembram da vez que... - e todos dizem que não, mas já ouviram a história mais de dez vezes.


E essa história fica por aqui, todos já foram dormir e Paulo está ajoelhado em frente à urna da tia pedindo proteção, assim como faz toda noite, até quando ninguém vê.


Hoje ninguém desconfia que a Tia Marinalva nunca existiu, inclusive ele.

3 comentários:

  1. caralho, bicho
    pensei que ele ia se lascar no final e agora a tia marinalva existe.

    tambem tive uma tia marinalva, mulher incrivel, bla bla bla....
    huahuahuahuahua

    abraço

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  2. acho que vou criar uma tia marinalva pra mim também. ela parece ser bem interessante.

    hahahahha.

    me divertindo horrores, bó :*

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  3. ihahaihiahuiahiuahiuahiua

    titia marinavalva rules!!!
    =P

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