sexta-feira, maio 25, 2007

Darfur

(precisava disso)

Darfur

Parte 1: Espelhos


- Eles estão chegando, eu sei que estão - diz o menino assustado.
- Quem? - pergunta alguém que não consigo reconhecer.
- Eles, sempre eles.
- Eles? Não vejo ninguém chegando.

Quem é esse homem? Por que tenho a impressão de conhecê-lo? Por que o que o segue é sua imagem, enquanto sua sombra mantém-se rígida, em pé?

- Toda as noites eles vêm, às vezes durante o dia. Eles machucam, muito.
- Machucam você?
- É.

E esse menino? Por que é tão difícil encará-lo?

- Prometo que não deixarei ninguém machucá-lo.
- Você não pode impedir.
- Posso e vou. Mas afirmo que não há ninguém chegando.

Silêncio, consegui encará-lo por um breve momento quando ele falou algo que me deixou pensando.

- Quando você parou de se importar?

Tão desprevenido quanto eu, ou mais, essa sombra, esse projeto de alguém fica sem saber o que responder, então o menino assume a conversa outra vez.

- Pelo jeito, faz tempo. Quando eu vou me tornar assim?
- É só você querer ser forte.
- Qual a diferença entre força e apatia? - pergunta a criança assumindo o papel de sábio e tornando possível, para mim, vê-lo por mais um curto espaço de tempo.
- Um não tem nada a ver com o outro - responde condescendente.
- Então por que você, apático, as confunde?

Pergunto-me quem está mais confuso nesse momento. Esse vulto que fala ou eu. Talvez ele, já que é preciso haver a dúvida para que uma pergunta seja feita. Então ele arrisca:

- Como as confundi?
- Você não é forte, você não é corajoso, você é alheio e sozinho. Não me reconhece porque já não é o mesmo, não reconheceria uma parte sua que não convém. Isso é apatia, é essa máscara de poder que lhe permite esse frágil olhar de confiança. Agora olhe pra mim. Reconheço a guerra ao meu redor. Continuo aqui, sem mais.

Uma dúvida esclarecida, talvez. É possível confundir força e apatia. Mas por que sua expressão consegue cegar minha consciência? Melhor, por que sequer presencio essa sua expressão, seu diálogo com uma silhueta? Sonho? Ou pesadelo?



Parte 2: Epifania


- Você é jovem pra entender o significado de coragem.
- Se eu sou jovem para entendê-la, por que você é que continua sem me encarar?

O silêncio que procede é doloroso demais para ser interpretado.

- Quem é você? - pergunto.

Pergunto? Onde foi parar a sombra? Quando me tornei parte do diálogo? Enigmático, ele responde:

- Interessante sua vontade de querer saber quem sou se ainda nem se deu conta que nesse quarto está presente apenas uma pessoa desde o começo.
- Como assim? E você? E aquela..
- Sombra? - me interrompe.
- Isso!
- Difícil se reconhecer no espelho, né?
- Hã? Onde foi parar? - pergunto cada vez mais intrigado.
- Está aí, frente a frente com você.
- Só vejo um espelho, e eu estou nele obviamente.
- Como sempre esteve. Consegue se ver, mas por que é tão difícil aceitar?
- Não aceito devaneios de uma criança.
- Então pare de se ver como uma.



Parte 3: Catarse


- Então, aqui, onde ficávamos três, encontro-me sozinho, como estive desde o começo. Com dois espelhos, válido lembrar.

Quase esqueço do papel e caneta.

- Quem é você?

Outra vez?

- Nunca fui um esquizofrênico com uma voz independente na minha cabeça.

Bem, eu nunca havia sido tinta em uma folha. Mas aqui estou, sou tão você quanto eu.
Sabendo que você, na verdade, é a voz na minha cabeça, não o contrário. E agora com a certeza que sempre estive só em minha consciênia, desde o começo. Mas esses espelhos... Enganam.

segunda-feira, maio 14, 2007

Glasgow (O Paciente)

(o final da série que contém Ataraxia e Catatonia, agora livre desse fardo! o mais confuso de todos.. se fora de contexto, bem-vindo a Glasgow)

Glasgow (O Paciente)

3.

Meus olhos fecham, não por instinto,
mas por consequência.
Vou de um lugar a outro sem sair do mesmo,
e ao meu redor o nada e um pouco de ninguém.

5.

O que antes não doía, hoje espera cicatrizar,
então calmamente, como se tivesse opção,
respiro no ritmo desse alarme que disparou
a incessante arrogância do tempo.

8.

Contraio para desviar do que nem vejo atingir
e respondo ao que nem sequer fui perguntado.
Culpo esses olhos que se abrem,
mas só pra ver o que machuca.

11.

Se agora sei onde dói,
perco a razão consciente do que manifesto.

13.

O branco ao meu redor que me consome
contrasta com aquele vermelho que acaricia.

15.

Acordo.
Espontâneo.
Olho em volta.
Sou eu,
mais uma vez.